sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Passo a passo

Tenho pensado que as pessoas podem não ser ou não são quem, realmente, pensamos ser ou quem, realmente, aparentam ser... Isto por causa de um livro 'delicode' que ando mais ou menos a ler. Não pegava neste livro talvez há anos, mas é daqueles livros que, quando retomamos a leitura, mesmo depois de anos, conseguimos saber, exactamente, em que ponto da história parámos. É daqueles livros que não desenvolvem, estão sempre a bater na mesma tecla e quando se chega ao fim fica-se com aquela sensação de "finalmente acabou, mas nem consegui perceber o porquê do título", isto porque a história é demasiado estranha...
Voltei a pegar neste livro, porque um ou dois dias antes tinha visto um filme que me relembrou parte da história.
O livro tem como personagem principal um arquitecto que tem sempre mil e uma coisas para fazer, mil e um sítios onde estar ao mesmo tempo e não vive além do trabalho, da empresa e dos prémios... Até ao dia em que decide oferecer um café a um mendigo que vive à porta da empresa. O mendigo muda a sua vida. Aliás, depois do café, o mendigo quase assume a sua vida. Além de outros pormenores estranhos, a história tem um que nunca percebi e chega a massacrar o leitor na tentativa de o explicar... O escritório do arquitecto, supostamente, funciona no décimo terceiro piso, mas esse piso não existe. Não consta dos botões do elevador, não consta na identificação do piso. Passa do décimo segundo para o décimo quarto piso, é como se existisse ali um buraco, sem ele, realmente, existir. A interpretação que faço disto é "aquele piso não existe porque as coisas e pessoas que 'habitam' nele também não existem. Assim, também arquitecto não existe porque era impensável alguém existir com aquela vida". Talvez o fim da história o revele. Não sei. E também não sei se algum dia chegarei a sabê-lo, porque o que me fez voltar não formam, nem os lindos olhos do arquitecto, nem as suas calças excelssamente engomadas, mas sim o mendigo... 

O mendigo apresenta-nos na história a sua visão do mundo. E se pensam que a sua visão é uma visão revoltada contra a sociedade onde sobrevive, enganam-se...
Este mendigo vive quase conformado com a sua situação, vive feliz a conhecer as pessoas pela sua forma de andar, pela marca dos sapatos, pela graxa com que engraxam os sapatos, pela cor dos atacadores... É assim, nesta simplicidade que conhece as pessoas. Não precisa de caras, nem de nomes... Pela forma de andar consegue tirar a "pinta" aos que por ali passam. Lembro-me de, quando comecei a ler o livro pela primeira vez, ter pensado que aquele homem e que a maioria dos mendigos do mundo, têm muito esta visão de cão... Se pensarmos bem os cães quando andam pelas ruas também só vêem sapatos, pés, formas de andar... Até em arquitectura isto é possível! Sabem aquelas janelas de cave que no exterior ficam rente aos passeios calcetados? Exacto, quem espreita através do interior delas também consegue essa visão de cão. Mas duvido que, quem espreite por elas e até mesmo os cães, tenham a sensibilidade deste mendigo. Não interessa o seguimento da história, porque é realmente entediante. Interessa apenas esta visão do mundo.

Lembrei-me disto quando vi "A Experiência Humana". Dois rapazes vão à procura de experiências humanas e de realidades diferentes das que vivem, uma delas passa por serem mendigos e viverem do nada. Dormirem na insegurança da ruas, no frio dos passeios, comerem o que tantas vezes não lhes dão, ou seja, nada...

E pergunto-me.
E nós?
Quantas vezes pensamos ser mendigos nas nossas vidas devassas apenas porque por momentos não nos compreendem, apenas porque nos dizem "não"?
E quantas vezes não somos realmente mendigos? Quando não tentamos conhecer, verdadeiramente, as pessoas à nossa volta e apenas nos deixamos deslumbrar pela sua 'forma de andar', apenas nos embevecemos com o que dizem ou como dizem e não levamos a fundo esse conhecimento?

O Senhor conhece as Suas ovelhas. Elas ouvem-n'O e reconhecem a Sua voz...
Até o cego de nascença na sua cegueira, soube reconhecer os pés do Mensageiro da Paz...

E nós nem nos damos ao trabalho de conhecer quem está ao nosso lado... Conhecê-los pela sua forma de andar, pela sua voz, pela sua alegria, pelos seus pecados, pelo seu silêncio...

Por isso me sinto feliz de conhecer o toque das chaves do meu pai ou da minha mãe, de saber distingui-los, de saber quando são eles ou são vizinhos que entram no prédio, de saber qual deles abre a caixa do correio, de saber quando são os tacões da minha mãe ou o passo coxo do meu pai...

Por isso sinto-me feliz de ser 'mendiga' e ter uma visão que passo a passo me leva a horizontes mais longíquos. Por isso me sinto feliz de ir conhecendo os que comigo caminham e que partilham as suas vidas comigo. Por isso me sinto feliz de amá-los na sua alegria, nos seus defeitos, nos silêncios, nas suas lutas...

Obrigado por nos deixares pegadas à beira mar para que saibamos reconhecer o Teu passo, o Teu caminho, mesmo na tribulação...

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