quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Tabacaria, Álvaro de Campos

"Não sou nada,
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do munod.
Janelasdo meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe que, é
(E se soubesse quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, descinhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por humanidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzr a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e essqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
...
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei ei do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantas que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
...
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não fiz.
...
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
...
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
...
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos,
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois dito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
..."
Tabacaria, Álvaro de Campos
Da vida de palco, para o palco da vida*

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